As três medalhas da Noi
Cozinha experimental às vistas do público e o desenvolvimento de receitas com novos parceiros. Inauguração de mais dois restaurantes, a abertura da fábrica para visitações regulares e o início das vendas em São Paulo. Esse clima de “a pleno vapor” é o vivido atualmente pela cervejaria Noi, a artesanal pioneira de Niterói (RJ). Grande vencedora da edição deste ano do Mondial de la Bière, a empresa preserva seu caráter familiar. À frente dos negócios, Bianca, Bárbara e Beatrice – duas irmãs e uma prima. Por ali, crise não existe. Só expansão.
Na fábrica da Noi, em Itaipu, Niteroi, o clima é de obras. E o “grosso” ainda não começou. Depois de uma grande expansão, ano passado, que aumentou a capacidade da cervejaria para 200 mil litros por mês, as modificações chegaram na cozinha. Literalmente.
Há tempos que enormes e brilhantes fermentadores instalados na frente da fábrica atraem a curiosidade do público - seja de quem passa pela rua, seja de quem está no restaurante que funciona no local. Agora, os equipamentos vão dividir as atenções com uma envidraçada cozinha que está prestes a “surgir” também na frente da fábrica.
Ali funcionará uma cozinha laboratório para experimentação de receitas. Quando Guilherme Zanin, um dos dois mestres cervejeiros da Noi, estiver por lá, seu trabalho poderá ser acompanhado por quem quiser. A ideia, segundo Bianca Buzin, é receber nesse local mestres cervejeiros convidados.
Foi um bate bola com a cervejaria gaúcha Tupiniquim que “arredondou” a receita da Passione, uma quadrupel envelhecida em barril de conhaque, rótulo medalha de platina no Mondial de la Bière deste ano.
Bárbara Buzin estava no evento, na hora que anunciaram os vencedores. Ela conta que “surtou”. Há três anos, a Noi não era premiada no Mondial. Na edição de 2017, além da medalha de platina, a cervejaria levou também duas medalhas de ouro para os rótulos Bárbara (barleywine) e Cioccolato Barile (imperial stout). Ao seu lado, o pai Osmar chorava.
“Temos noção do quanto difícil é ganhar. É claro que quando inscrevemos um rótulo acreditamos nele, mas as três medalhas de uma vez só foi uma surpresa muito grande. Ganhar um prêmio é importante porque dá mais visibilidade para a marca, aumenta a procura pelo rótulo. Cada prêmio é como se fosse o primeiro. E cada vez que passa, vem a cobrança de não deixar de ganhar outra vez. Na fábrica, todo mundo fez a maior farra com as medalhas”, comenta Bárbara.
É ela quem costuma enviar para os concursos as garrafas das cervejas escolhidas para participar das competições. Entre risadas, conta que embala uma a uma e beija. Vai pessoalmente despachar no aeroporto e começa a ansiedade da torcida. Esse ritual ela acabou de voltar a fazer com os sete rótulos enviados para a Copa das Cervezas de America, que acontece até domingo dia 22, em Santiago (Chile). Passione, Bárbara e Cioccolato Barile foram outra vez para o “front”. Ano passado, a Noi foi eleita a melhor cervejaria brasileira no evento. [Saiba quem são os vencedores da Copa das Cervezas de America 2017 ]
No caso da Bárbara, a cerveja, a receita surgiu a partir de um erro. Bárbara, a filha, estava com o pai experimentando cervejas nos Estados Unidos. Decidiram que fariam um rótulo envelhecido em barril de carvalho. No Brasil, encomendaram o barril e eis que finalmente chega um de... vinho do porto.
O desapontamento do primeiro momento se tornou o desafio de criar uma receita que fizesse “sentido” com o “barril errado”. Para o comando dessa “operação” foi o próprio Osmar, um exímio sommelier de vinho que não suportava beber cerveja até que “descobriu” as artesanais. No exterior.
Apesar das medalhas, Bianca, Bárbara e Beatrice dizem que tiveram vários transtornos nesta edição do Mondial de la Bière. Beatrice Signor conta que, no primeiro dia, foram muitos os problemas tanto operacionais quanto técnicos, como falta de energia elétrica e estandes sem tomadas. Segundo ela, a Noi teve que suspender as vendas por uma hora e chegou a comprar energia elétrica extra. O novo sistema de registro de compra e venda também não agradou.
Bianca lembra, ainda, o desgaste da cervejaria junto ao público, por conta da medição errada do copo oficial do evento:
“Os clientes questionavam como se a gente estivesse de má fé. Com isso, todas as cervejarias acabaram por servir bem mais do que a dose certa. Participamos desde o primeiro Mondial e não esperávamos tantos problemas por parte dos organizadores. Sempre foi maravilhoso participar. Nós crescemos com o evento, mas este ano, foi particularmente difícil”.
Bairrismo
Inaugurada há seis anos, a Noi, na percepção das suas executivas, somente agora conseguiu cativar o coração dos niteroienses. Na opinião de Bárbara, a cidade só “vestiu a camisa” da cervejaria depois que ela passou a fazer sucesso no Rio de Janeiro – a Noi tem no Leblon uma unidade que junta cervejaria com restaurante. Exatamente como em Niterói, onde já funcionam três do tipo (incluindo o restaurante da fábrica). A “Cidade Sorriso” está prestes a ganhar mais dois estabelecimentos: um na rua Moreira César, a mais nobre de Niterói, e o outro no Plaza Shopping , onde o atual quiosque da cervejaria será transformado em restaurante. Tudo a ser inaugurado até o final do ano.
“As pessoas em Niterói têm o hábito de fazer tudo relacionado a lazer no Rio. Não nego que também faço isso. Quando surgimos, não deram muita bola para nós. Porém, quando o restaurante do Leblon começou a fazer sucesso, houve uma mudança. No Rio, as pessoas, de cara, tiveram muito carinho pela marca”, conta Bárbara.
A Noi também vem marcando presença, há tempos, em Búzios, o badalado balneário do Rio de Janeiro. Por lá, é praticamente a única artesanal encontrada. Agora, a cervejaria se prepara para “invadir” São Paulo. A meta é passar a ser encontrada em vários pontos de venda, na “Terra da Garoa”, também até o final do ano.
Mas, afinal, a Noi foi comprada pela Ambev? Risos gerais.
“Nunca houve uma única conversa deles conosco. Hoje damos risadas quando sabemos que o boato está correndo, mais uma vez. Mas nas primeiras vezes não foi assim. É um assunto sério. Acredito que isso está relacionado com a percepção do público em relação à marca. Como se, ao ficar maior, o caminho fosse ser adquirido por algum grupo”, afirma Bianca.
Sobre essa “percepção de marca”, Bárbara observa que tem pessoas que chegam na Noi e se decepcionam: acham que a fábrica é pequena. Outros se surpreendem e acham enorme. Muitos pedem para visitar, atraídos pelos fermentadores na entrada. E visitas informais sempre são feitas, com o público tendo que passar pelo meio da cozinha do restaurante.
A obra que vai resultar na cozinha laboratório também vai rearrumar o “circuito” da fábrica. Assim, as visitas passarão a ser feitas de forma rotineira, uma vez por mês, com pré-agendamento. A reforma também vai permitir a exibição de uma linha do tempo da cervejaria, que há um ano vem sendo produzida carinhosamente por Bianca. A história começa na região italiana do Vêneto, origem da família, passa pelo sul do Brasil até chegar no Rio de Janeiro. Um pouco dessa linha do tempo já pode ser vista em uma série de “bolachas”.
Em família
Bianca, 28 aos, e Bárbara, 27, são irmãs. Beatrice, 28, é prima. Todas são formadas em
Administração. Cresceram juntas e trabalham desde criança nas empresas da família, que começou com restaurantes. Elas recordam que, pequenas, entregavam flores para os clientes ou arrumavam a mesas – tarefa que Bárbara conta que adorava fazer.
Agora, dividem um mesão no escritório da Noi. Quando descem para almoçar no restaurante “de casa”, continuam a trabalhar nos seus celulares. Elas contam que foram assumindo a cervejaria aos poucos. Cada vez mais, o patriarca Osmar vai sair do operacional para se dedicar à parte criativa da cervejaria, como o desenvolvimento de receitas.
Jovens, mulheres, filhas do dono – haja preconceito para quebrar em um ambiente masculinizado como o da cerveja.
“Já passamos muitos perrengues”, admite Bárbara.
“Quando chegamos nos eventos, nos olham com desconfiança. Quando vamos para trás do balcão, carregamos barris e tiramos chope, tudo acaba”, conta Beatrice que não ingere bebida alcoólica simplesmente porque não gosta.
“O machismo e o preconceito contra a mulher no meio cervejeiro não é um problema que nós carregamos. Crescemos sendo incentivadas a dar valor ao trabalho e trabalhamos desde pequenas. Nós fomos amadurecendo junto com a empresa. Nosso pai é, ainda hoje, quem dá a palavra final de tudo, mas nós é que tocamos o dia a dia. Nós não levamos o preconceito com a gente talvez por conta da educação que tivemos. Muita vezes, a mulher já se vitimiza porque tem o machismo interiorizado nela”, comenta Bianca.
Na rotina do trabalho, elas contam principalmente com a ajuda do mestre cervejeiro Gilmar Gutbrodt. Ele é o “chão de fábrica” da Noi. Já Guilherme Zanini é o responsável pelo controle de qualidade e criação de novas receitas.
Para o próximo verão, a Noi não lançará novos rótulos. Vai manter os trabalhos com a Sicilia (Witbier com limão siciliano e coentro) e Tramonto (American Wheat Beer com caju). Esta última foi uma receita vencedora do concurso realizado pela Acerva Niteroi, comprada pela Noi. Aliás, quando a marca surgiu, em 2008, a cerveja era “terceirizada”, servida nos restaurantes do grupo. A “cerveja própria” só chegou na Noi em 2011, com a inauguração da fábrica. E o nome Noi não se deve a Niterói. Significa “nós” em italiano.
Concorrência
Sobre o futuro do movimento cervejeiro de Niterói, o grupo Noi já se engajou no processo de criação do selo de identificação da bebida produzida na cidade.
As executivas acreditam que muitos entram no mercado sem saber das reais dificuldades existentes para se produzir cerveja. Ela cita a burocracia como a maior delas.
“Levamos oito meses para conseguir o MAPA da Cioccolato simplesmente porque a pessoa que cuidava disso estava de licença e o processo estava trancado na sua gaveta. Agora, pelo menos, o Ministério da Agricultura informatizou o processo”, conta Bárbara.
A cervejaria pioneira da cidade, encara aparentemente sem preocupações, a chegada de novos rótulos e concorrentes ao mercado. Na opinião de Bárbara, “tem espaço para todos”. Ela observa, porém, que nem todos os lançamentos são bons.
“Os bons vão ficar”, afirma.
Crédito: Sônia Apolinário
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