Livro 'Sobre Lutas e Lágrimas' joga luz sobre o ano de 2018 com foco na luta travada no país
Lançado há menos de um mês, o livro “Sobre Lutas e Lágrimas: uma biografia de 2018” (Editora Record) já entrou para a lista dos mais vendidos das principais livrarias físicas e online do país. O autor é um dos jornalistas mais premiados do Brasil, Mário Magalhães – são, até agora, 25 prêmios, entre eles, Esso de Jornalismo e Every Human Has Rights Media Awards.
A nova obra presta uma homenagem a outro título ícone: “1968, O Ano que Não Terminou”, do também jornalista Zuenir Ventura. Cinquenta anos separam as duas datas que norteiam as publicações, mas nem parece, tamanha as “coincidências de calendário” que se sucedem. Como Zuenir, Mário sustenta que 2018 ainda não terminou e vai durar por um bom tempo.
Em entrevista, feita na Livraria Leonardo da Vinci, no Centro do Rio, o jornalista contou sobre o processo de criação do livro, que se tornou um instrumento de reflexão para o atual debate nacional. Segundo ele, desde janeiro, 2018 deu “indícios de que não seria um ano normal”. A decisão de que deveria escrever sobre a data teve dia certo: 14 de março, quando foram assassinados Marielle Franco e Anderson Gomes. Trata-se de um livro partidário?
“O livro toma partido da civilização contra a barbárie. É sobre lutas de quem lutou contra o obscurantismo. E lágrimas de quem perdeu tantas batalhas relevantes para o obscurantismo. Mas não significa que seja um panfleto. Eu não sei escrever panfletos. Eu sou um contador de histórias”, diz ele que foi não apenas repórter especial da “Folha de S.Paulo”, como ombudsman da publicação. Mário também trabalhou nos jornais "O Globo" e "O Estado de S. Paulo". É o autor da biografia “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”.
O que fez você escrever um livro sobre o ano de 2018?
MM: 2018 já começou diferente. Foram muitos indícios de que não seria um ano, digamos, normal. Vamos lembrar. Em janeiro, como o livro conta, teve o surto de brutalidade e ignorância de gente matando macacos por achar que os animais transmitiam a febre amarela. Ao mesmo tempo, milhares de brasileiros estavam fugindo da própria vacina contra febre amarela, achando que ela era uma trama urdida no exterior para exterminar a população brasileira. Ainda em janeiro, teve condenação em Segunda Instância, abrindo caminho para a prisão de um ex-Presidente da República, que se tornaria o primeiro ex-Presidente preso em processo criminal, na história do Brasil. Temos um carnaval extremamente polarizado, marcado pelo Vampirão da Sapucai (destaque da
Paraíso do Tuiuti, escola de samba vice-campeã do Grupo Especial do Rio de Janeiro), que não retorna com a fantasia completa para o desfile das campeãs – como lembro em um capítulo sobre a volta da censura. Na noite de 14 de março, data dos assassinatos da Marielle Franco e Anderson Gomes, foi quando tive noção que o ano tinha que ser contado. Todos os eventos que sobrevieram em 2018 comprovaram essa hipótese de que seria um ano marcante na história do país e que influenciaria a vida nacional por décadas – isso em dezembro já estava claro com as intenções do governo então eleito em relação à educação e ciência, ao impacto de 30 milhões de brasileiros que deixaram de ter atendimento médico o mais elementar, com a saída dos médicos cubanos do Mais Médicos, com a volta de milhões de brasileiros em situação de pobreza mais extrema. O início de 2018 foi trepidante, tanto que se dizia, à época, que 2018 não esperou o carnaval chegar para começar
Como selecionar uma avalanche de acontecimentos para fazer o perfil de um ano?
MM: Há fatos que se impõem: a morte da Marielle e Anderson; a prisão do Lula; a vitória do Bolsonaro; a formação do novo ministério; o incêndio no Museu Nacional. Há capítulos que carregam uma certa subjetividade. Por exemplo, a partir do fenômeno do feminicídio e do combate ao feminicídio, faço um capítulo agrupando as questões de desigualdade de gênero no Brasil. Na minha opinião, a história dos macacos e da febre amarela metaforiza o Brasil de 2018. Há capítulos obrigatórios como o da Copa do Mundo, que eu preferi contar para fazer rir e não chorar – esse capítulo é uma coleção de piadas sobre as quedas do (jogador) Neymar, que se espalharam pelo mundo inteiro. Outro capítulo obrigatório foi a paralisação dos caminhoneiros, mas o que destacar? O capítulo conta o drama do desabastecimento e outros perrengues, mas o importante foi mostrar a questão histórica de como paralisações de caminhoneiros serviram a propósitos golpistas, na história da América Latina, e como eles pregaram a intervenção militar. Outro capítulo subjetivo é o que dedico ao álbum “Deus é Mulher” por achar que ninguém canta o Brasil de 2018 melhor e nem inspira mais as almas generosas do que Elza Soares. “Deus é Mulher” permite comparar a letra de cada música com acontecimentos do período. (clique na foto e ouça)
Na minha opinião, um dos melhores capítulos é sobre o Doutor Bumbum.
MM: O Doutor Bumbum até poderia ter ficado fora do livro, mas ele se encaixa muito bem para refletir a hipocrisia nacional. É a história que a imprensa dominante não quis contar que é a militância política dele. O Doutor Bumbum é a síntese da hipocrisia de quem prega uma coisa e faz outra.
Morte aos macacos, nazismo de esquerda, Terra plana. O que aconteceu com o brasileiro?
MM: O livro tem idas e vindas na história do Brasil e do mundo. O crash da Bolsa de Valores de 1929 criou ambiente propício para a ascensão do nazifascismo. A crise econômica de 2007-2008 também antecede a chegada ao poder de organizações obscurantistas, em vários países. A eleição do Bolsonaro faz parte desse fenômeno mundial, embora eu ache que o destino foi muito cruel com a gente por nos oferecer o que há de mais vulgar, ignorante e intolerante nessa onda mundial. No livro, sustento que foram quatro aspectos que foram importantes para a vitória do Bolsonaro: a degradação econômica, com a disparada do desemprego; o agravamento da insegurança pública; a desmoralização da política tradicional com muitos casos de corrupção revelados, mais a ação controversa da Operação Lava Jato e questões relativas à moral e costumes. Duas, três décadas antes, os evangélicos representavam 10% da população eleitoral brasileira, agora são 30%, o que não é bom nem ruim, mas é um fato. Ainda assim, acho que a vitória do Bolsonaro deveu-se à ausência do único candidato que seria capaz de derrota-lo. No fim de agosto, o Datafolha apontou Lula, preso, com 20 pontos de distância na frente do Bolsonaro. A eleição se decide no momento em que a justiça impede que o candidato que venceria o Bolsonaro concorresse. E o juiz que foi determinante para que isso ocorresse, acaba sendo premiado com um superministério, no novo governo.
A eleição foi marcada por avalanches de notícias falsas. A mais “famosa” foi o kit gay, tema de um dos capítulos.
MM: Também foi um assunto que se impôs. Bolsonaro é ignorante, mas não é burro. A história de como foi construída uma mentira que mais influenciou uma eleição no Brasil, que foi o kit gay, é impressionante. É uma mentira plantada em 2010, quando o ministro da Educação era o (Fernando) Haddad, adversário de Bolsonaro no segundo turno. Foram oito anos de construção de uma mentira na qual 85% dos eleitores do Bolsonaro acreditaram. Outro assunto que me impactou e se impôs para mim foi o processo do Superior Tribunal Militar (que li duas vezes) de 1987-88, que antecede a saída do Bolsonaro do exército. O que mais me marcou ali, não foi a história do oficial acusado de planejar atos terroristas contra quartéis para reivindicar soldos maiores. O que mais me impressionou é que dois superiores hierárquicos a ele contam que o capitão era obcecado pela ascensão social, com enriquecimento. Bolsonaro usava o tempo de férias para garimpar, procurar ouro. Dois superiores dizem que o objetivo da vida do Bolsonaro era enriquecer. E os números relativos ao patrimônio dele mostram que ele foi bem-sucedido nesse projeto.
Todo o livro foi escrito em 2018? Quando colocou o ponto final?
MM: A introdução é o único capítulo que escrevi depois de 2018, mas que só usa informações disponíveis até 31 de dezembro de 2018. Meu livro tem algumas diferenças em
relação ao clássico sobre o ano de 1968 que Zuenir Ventura escreveu. “1968 - O Ano que Não Terminou” foi escrito e publicado em 1988, portanto, 20 anos depois dos eventos narrados. A maioria dos capítulos do livro sobre 2018, publiquei originalmente, como colunas semanais, no site The Intercept Brasil. Os capítulos mais densos, com maior ambição jornalística e de narrativa, com exceção do prólogo, escrevi a quente. Nunca escrevi algo tão potente, com tanto coração combinado com cabeça. Dentro de 20 anos, não sei como narraria as manifestações que ocorreram no dia seguinte ao assassinato de Marielle e Anderson. As pessoas que eu ia encontrando não têm sobrenome, são amigas, amigos, jovens, velhos. O que busquei com essa opção jornalístico-literária? A proximidade das pessoas. Duas, três semanas antes, tinha escrito lembrando que iria fazer 50 anos do assassinato do estudante Edson Luís, durante a ditadura, em março de 68. Terminei aquele texto dizendo que havia uma letargia no Brasil e perguntando o que aconteceria se houvesse um assassinato dessa natureza. E a resposta é: muita gente vai pra rua. E a resposta ocorre depois de uma tragédia, que foi a covardia do duplo homicídio. O capítulo sobre o segundo turno e a vitória do Bolsonaro, daqui a dez anos, teria muito menos emoção, seria muito mais racional. 2018 foi um choque entre tensão e coração.
Tem emoção, mas não é um livro adjetivado. Você está sendo “acusado” de ter tomado partido?
MM: É um livro partidário. Ele toma partido da civilização contra a barbárie. Não é em cima do muro. Ele conta duas histórias: a história dos que pregaram a favor do obscurantismo e conta, sobretudo, a grande história de quem foi à luta contra o obscurantismo, em 2018. O título do livro, que combina o épico das lutas com o lirismo das lágrimas, fala de quem lutou. Sobre lutas e lágrimas. Lutas de quem lutou contra o obscurantismo. E lágrimas de quem perdeu tantas batalhas relevantes para o obscurantismo. Mas eu tomo cuidado. O fato de ser partidário da civilização contra a barbárie, não significa que seja um panfleto. Eu não sei escrever panfletos. Eu sou um contador de histórias. Pessoas me relatam que se emocionam ao ler o livro. Essa emoção não se deve a um texto derramado, edulcorado, adjetivado, panfletário. Até porque o meu estilo é de texto razoavelmente seco, mas pelos fatos contados. O capítulo sobre a morte da Marielle e do Anderson é muito triste, mas se concentra na manifestação do dia seguinte ao assassinato. Na abertura do livro, fiz uma referência, uma reverência, à abertura do livro do Zuenir, que abre com o Réveillon na casa da professora Heloísa Buarque de Hollanda. No meu, conto como foi o Réveillon de Marielle e Monica Benício. O que se celebrou, na data, foi a esperança. Elas se casariam no dia 7 de setembro, em Búzios, na praia. Os padrinhos já estavam escolhidos. Tinham planos para filhos. Na manhã de primeiro de janeiro, elas falaram sobre o futuro delas juntas, velinhas. O livro tem muita emoção, mas é especialmente a grande história de quem confrontou o mal, de quem combateu o bom combate pela tolerância, pela generosidade, contra o egoísmo, contra tudo o que o bolsonarismo representa.
Teremos um livro sobre 2019?
MM: 2019 é continuação de 2018. O livro tem dois subtítulos: “Uma biografia de 2018”, na capa, e, na contracapa, “O ano que o Brasil flertou com o Apocalipse”. Algumas pessoas me dizem que 2018 foi o ano do Apocalipse. Não acho porque o Apocalipse equivale a um fim. Se a história de 2018 tivesse mesmo acabado em 2018, não teríamos assistido às pujantes manifestações, em todo o país, nos dias 15 e 30 de maio, contra Bolsonaro. 2018 não terminou e vai continuar por décadas. Por exemplo, o início de 2018, lembra uma das primeiras ações da ditadura de 64 que foi perseguir e cassar cientistas de Manguinhos. Alguns dos maiores cientistas brasileiros foram embora. Antes, teve gente que ficou 15 anos no exílio, ao invés de produzir ciência aqui. Muitos nunca voltaram. O mesmo está acontecendo agora, com muita gente indo embora porque não tem como pesquisar aqui, com um ambiente obscurantista, com um ministro da Educação que tem ideias medievais. Daqui a 50 anos, quando se olhar o Brasil de 2018, vai se reconhecer a mesma importância, mesma influência que, em 2018, identificamos em 1968.
São 50 anos de diferença com muitas coincidências.
MM: Tem muita coisa que bate, no calendário. Em 5 abril de 68, a ditadura proíbe a Frente Ampla; 5 abril de 2018, acaba sessão do STF que deu sinal verde para a prisão do Lula; março de 68, a Polícia Militar mata com tiro no peito o estudante Edson Luís; março de 2018, assassinatos de Marielle e Anderson. Tem muitas coincidências históricas. O livro vai e volta no tempo não é por uma idiossincrasia minha, um encanto por História do Brasil, mas porque os fatos se impõem.
Comercialmente falando, foi fácil emplacar editora?
MM: O grupo Record foi de extrema coragem. Esse livro foi contratado pela editora Leya, que viveu problemas operacionais e financeiros que inviabilizaram a edição do livro. Fui, então, procurado pela Record que teve a coragem de publicar um livro anti obscurantista durante o governo Bolsonaro. O livro ainda está chegando em livrarias pelo país, mas os lançamentos reuniram centenas de pessoas e muitas delas compram o livro não só para revisitar os fatos e ideias de 2018, mas para refletir sobre o que foi o ano que continua a imperar no Brasil. Acho que o livro é também um instrumento de reflexão para o debate nacional.
Este ano, você não sai da berlinda tão cedo, já que o filme “Marighella”, adaptado da biografia que escreveu sobre o guerrilheiro baiano, está para ser lançado.
MM: O lançamento está marcado para 20 de novembro. O filme dirigido pelo Wagner Moura, foi inspirado na biografia “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras). Vi até agora 5, 6 sequências, somando uns 15 minutos. Acompanhei filmagens e fiz palestra para ao elenco.
Ajudou no roteiro?
MM: Não. Minha contribuição para o filme é o livro que escrevi. Meu livro é de não ficção. O filme é de ficção, porém, baseado em fatos reais. Meu livro tem três partes. O filme se concentra nos anos finais do Marighella, ou seja, ele na luta armada. É um filme de ação. O filme já foi exibido em festivais de cinema em oito países e foi muito bem recebido. Estreou mundialmente, em fevereiro, no Festival de Berlim (Alemanha), um dos três mais importantes do mundo. No festival internacional de Bari (Itália), seu Jorge (intérprete de Marighella) ganhou o prêmio de melhor ator.
O que o está "aprontando", agora?
MM: Estou trabalhando no meu próximo livro que é a biografia do Carlos Lacerda. Sairá pela Companhia das Letras em dois volumes: o primeiro no fim de 2020 e o segundo, em 2021.
É um projeto seu ou foi encomendado?
MM: É meu. Desde a adolescência quero escrever a biografia do Carlos Lacerda. É um personagem histórico pelo qual tenho fascínio. Eu sou repórter e não admitiria escrever uma biografia só reunindo informações já conhecidas. Em 2015, tive acesso a uma primeira leva de documentos inéditos que me deram a certeza que eu teria muita coisa nova para contar. Eram 40 documentos classificados originalmente como reservados do governo norte-americano. Só dos Estados Unidos, hoje, tenho 1.400 documentos somando 40, 50 mil páginas. Quem escreveu antes sobre Carlos Lacerda não teve acesso à documentação
secreta que o envolve que estou tendo também na França , na Rússia e no Brasil. É muito documento revelado recentemente, que permite contar uma história dele como nunca foi contada. Carlos Lacerda é um personagem espetacular. Não serei juiz dele - como não fui do Marighella - nem promotor contra ele, nem advogado dele. Por isso que eu digo: “Sobre lutas e Lágrimas” é um livro diferente. É partidário, é civilização contra a barbárie e é um livro com muita emoção, escrito a quente.
O que o fascina tanto em Carlos Lacerda?
MM: Ele ajuda a entender o Brasil de hoje, pela esquerda e pela direita. Politicamente, ele começou no comunismo, depois se tornou o mais brilhante anticomunista da história do Brasil. Como conto no livro sobre 2018, de 1966 a 1968, ele estava na Frente Ampla com Juscelino Kubitschek, João Goulart e o Partido Comunista. O livro de 2018 tem um capítulo sobre a Frente Ampla por conta dos debates, agora, sobre a necessidade de uma frente ampla contra o obscurantismo, que infelizmente, ainda não chegou a se formar.
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