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Redação

Três anos depois, tragédia de Brumadinho segue sem punições

A tragédia de Brumadinho (MG) completa três anos sem que culpados tenham sido punidos. As buscas por corpos continua porque ainda restam pessoas desaparecidas. Uma entrevista com os jornalistas Lucas Ragazzi e Murilo Rocha, autores do livro “Brumadinho: a engenharia de um crime” ajuda a entender o que levou à tragédia, quem são os responsáveis e porque é tão difícil uma punição.


Lucas Ragazzi é repórter do Núcleo de Jornalismo Investigativo da Globo Minas. Tem passagem pelo jornal "O Tempo", onde cobriu política e comandou a coluna "Minas na Esplanada", direto de Brasília. Natural de Belo Horizonte, este é o seu primeiro livro-reportagem.


Murilo Rocha é editor-executivo do jornal "O Tempo", onde trabalha desde 2001, tendo atuado como repórter das editorias de Cidades e Política, inclusive em Brasília. Mineiro, de Belo Horizonte, sempre conviveu com histórias da mineração por raízes familiares e também por curiosidade. Venceu o Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos.




Não foi acidente. A frase pintada em cartazes de protesto logo após a maior tragédia socioambiental da história do país não estava errada. A Vale sabia dos riscos elevados de ruptura da barragem da mina de Córrego do Feijão pelo menos desde o segundo semestre de 2017 e podia ter evitado a morte de 270 pessoas e danos à bacia do rio Paraopeba.


O desastre de Brumadinho deixa um rastro documentado de negligência com a vida humana e com o meio ambiente. Agora, a história da tragédia toma as páginas do livro-reportagem “Brumadinho: a engenharia de um crime”, o primeiro sobre o desastre ocorrido em 25 de janeiro de 2019. Baseado nas investigações da Polícia Federal, a obra traz informações inéditas sobre os bastidores da investigação e o cotidiano no complexo minerário.


Os jornalistas foram responsáveis pela costura dessa narrativa que está documentada em relatórios internos da mineradora, trocas de e-mails de auditores externos e depoimentos de funcionários. Em entrevista exclusiva para o Blog da Letramento, os autores contaram um pouco do processo de construção do livro-reportagem e dos bastidores da investigação.


Como se conta a história de uma tragédia? Quais foram os maiores desafios durante a produção do livro?


Não é fácil contar a história de uma tragédia humana como a de Brumadinho. Além do cuidado em não expor relatos de forma sensacionalista e não aumentar a dor das vítimas e de suas famílias, há a responsabilidade ética e profissional em não promover pré-julgamentos contra os investigados e nem endossar pensamentos punitivistas e autoritários.

O livro se torna um documento histórico sobre o desastre e sobre responsabilidades do crime, feito com uma linguagem e visão jornalística sem deixar de lado alguns elementos de literatura na construção da narrativa. Os maiores desafios passam justamente pela busca por um equilíbrio na maneira de narrar essa história, sem se deixar levar por exageros e pensamentos pré-concebidos.

Durante a produção do livro, foi possível perceber que a própria polícia também tinha dificuldades para lidar com essa separação entre as responsabilidades individuais e corporativas diante da tragédia. O curto tempo de produção deste livro-reportagem também se mostrou desafiador, aliado ao fato das fontes ouvidas ainda estarem envolvidas na investigação, com informações delicadas e, às vezes, até sigilosas. Outra tarefa árdua foi contar uma trama com muitos detalhes técnicos e idas e vindas no tempo sem deixar o leitor confuso ou perdido durante a leitura.


O que o livro traz de diferente do que já foi abordado pela mídia? Ele revela informações que ainda não tivemos acesso?


A obra apresenta uma perspectiva completamente nova da já veiculada pela imprensa e pelo poder público. Há o elemento do bastidor, do dia a dia das investigações. As dúvidas, negociações, reflexões e divergências da Polícia Federal com outros órgãos de investigação também são abordadas. O livro mostra, ainda, de forma cronológica e organizada, documentos e diálogos nunca antes publicados indicando uma possível negligência da Vale e de alguns de seus executivos na administração da barragem I, da mina de Córrego do Feijão, e de outros empreendimentos da mineradora. Ainda há capítulos dedicados ao drama das vítimas, à busca incansável dos bombeiros e ao histórico da mineração no Brasil.


Como vocês avaliam o papel da imprensa brasileira durante a cobertura da maior tragédia/crime socioambiental da história do país?


Foi um papel responsável e crítico, como o bom jornalismo deve ser. O livro, em muitos trechos, cita e reproduz coberturas da imprensa brasileira sobre o desastre. Ao mesmo tempo em que os veículos mostravam cobranças duras às empresas e até mesmo às investigações, também contavam histórias que humanizaram os envolvidos e atingidos pelo rompimento da barragem. Isso é primordial e sem dúvida foi usado como fonte para a produção do livro.


O livro contém relatórios internos da mineradora, trocas de e-mails de auditores externos e depoimentos de funcionários. Como vocês realizaram a apuração?


Um dos principais capítulos mostra, de forma detalhada, trocas de mensagens, e-mails e documentos internos da equipe da mineradora que administrativa o complexo da mina de Córrego do Feijão. É um material essencial não só para a investigação da Polícia Federal, que, a partir dali, flagrou a ocorrência do crime de falsidade ideológica e documentos falsos, mas também para que a população entenda como uma tragédia desse tamanho poderia ter sido evitada. A apuração se deu ao longo de sete meses e envolveu não apenas entrevistas com os investigadores da Polícia Federal, mas também com fontes do Ministério Público, consultores, especialistas e até mesmo funcionários das empresas envolvidas. Foi um trabalho de jornalismo investigativo.


O que mais surpreendeu ao longo da apuração?


A proximidade física e temporal das tragédias de Mariana e Brumadinho por si só é um fato assustador. Mas, ao começarmos a produção do livro, nos chamou a atenção outras "coincidências" entre os dois desastres. Personagens se repetiram de uma tragédia para a outra, assim como alertas ignorados. A Vale sabia dos riscos de sua barragem e negligenciou uma solução mesmo depois das 19 mortes e danos ambientais irreparáveis causados no desastre da Samarco, em Mariana, em 2015. Mesmo não querendo provocar o rompimento, engenheiros e executivos da mineradora fizeram uma aposta trágica ao decidir manter a situação como estava.


Como foi o trabalho de transformar documentos, dados e números em algo acessível para o público?


Esse não é um trabalho fácil, ainda mais se tratando, por diversas vezes, de documentos com linguagem técnica e informações de engenharia. Somos jornalistas e, apesar de outras coberturas envolvendo desastres, os conhecimentos na área são, em suma, semelhantes ao do grande público. Então foi um trabalho de aprendizado e muito estudo junto a especialistas, policiais e professores. Houve também muita leitura e pesquisa em livros, relatórios e todo o tipo de documento sobre mineração. Tudo para explicar da melhor forma a tragédia, deixando o texto atraente tanto para quem entende do assunto como para quem nunca leu nada sobre o episódio de Brumadinho.


Qual vocês acham que é a importância desse livro-reportagem na investigação sobre a Vale e para a própria forma como o jornalismo vem atuando na cobertura de desastres?


O livro é importante, sobretudo, porque é um registro de como se produziu uma das maiores tragédias humanas da nossa história. É um livro-reportagem que deve ser lido não só para a compreensão do que ocorreu, mas também como alerta e cobrança para o futuro. O número de barragens pelo Brasil, especialmente em Minas Gerais, é grande e aumenta a cada ano. Será que estamos fazendo uma cobertura correta sobre a qualidade e a segurança dessas estruturas? Brumadinho poderia ter sido evitada se tivesse havido uma fiscalização maior da sociedade e da imprensa? Precisamos sempre refletir e suscitar esse debate. E, é claro, cobrar do poder público e das mineradoras. Esse é o papel do livro. O país não pode ser palco de mais uma tragédia como essa.


Vocês acreditam que ainda há muito mais do que sabemos sobre os escândalos da Vale? Como vocês avaliam que serão os próximos desdobramentos?


O mundo da mineração, principalmente os seus bastidores, sempre terá aspectos pouco compreendidos pela sociedade. É um mercado importante, essencial para a economia dos Estados produtores e na geração de empregos, ao mesmo tempo que sua ação, as vezes irresponsável e abusiva, transforma paisagens e biomas antes intocados em áreas de utilidade única para a empresa. Os efeitos da mineração irresponsável ocasionam, ainda, na remoção ou destruição de comunidades rurais. Os próximos desdobramentos dessa investigação em Brumadinho podem atingir estas questões, o da extração mineral predatória que não se preocupa com as comunidades locais. Isso, claro, não só em Minas, como no Brasil e no mundo. Até então, mesmo depois da tragédia de Mariana, são as próprias empresas, pela importância econômica que têm, quem ditam as regras desse universo. Historicamente elas têm se autorregulado. E não tem dado certo. Basta olharmos para as tragédias recentes ou para a paisagem destruída por toda Minas Gerais.


Vivemos hoje um período de desvalorização da política brasileira referente as questões ambientais. Como vocês acham que o livro se encaixa no atual contexto político, social e ambiental em que estamos vivendo?


É um livro-reportagem que retrata bem o momento de desprezo e desmonte das políticas públicas de fiscalização e gestão do aparato ambiental. O avanço no enfraquecimento das entidades governamentais e até mesmo da legislação de proteção do Meio Ambiente pode provocar episódios semelhantes aos que o livro denuncia. Se a investigação da Polícia Federal revelou a falsificação de índices de segurança, documentos falsos e até mesmo fraudes em estudos, a flexibilização da fiscalização vai facilitar e até estimular essas irregularidades, mas com uma diferença: dependendo do tamanho do assalto à Constituição, atitudes que acabaram resultando no rompimento da barragem de Brumadinho podem até mesmo deixar de serem tipificadas como criminosas. Vivemos tempos delicados em que não podemos baixar a guarda e retroceder em direitos conquistados.


Entrevista publicada, originalmente, no Blog da Letramento



Factual


Reportagem do UOL relata que, passados exatos três anos do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), o governo federal mantém apenas 14 servidores para fiscalizar as 350 barragens de mineração existentes em Minas Gerais, de acordo com dados da ANM (Agência Nacional de Mineração). Como resultado da falta de pessoal, a agência vistoriou menos da metade dessas estruturas nos últimos dois anos.


O número reduzido de fiscais fez com que apenas 133 barragens (38% do total) fossem vistoriadas em 2020 —houve ainda 19 vistorias adicionais naquele ano, somando 152 fiscalizações.


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